Lessa Gustavo - os_sinos_que_não_lustrei_

Por trás dos sinos: a história real do clipe que moldou uma estética no rap alternativo


No longínquo 2017, um artefato audiovisual raro começava a se desenhar no subsolo da cultura urbana brasileira. Quase sem aviso, os_sinos_que_não_lustrei emergiu da fricção entre linguagens, territórios e subjetividades, condensando a urgência de um encontro entre três forças criativas em estado bruto: Lessa Gustavo, com sua lírica densa e introspectiva; Arit, conduzindo a pulsação sonora com texturas fragmentadas; e Negrelli (ou simplesmente 82), operando a lente como quem decifra uma mitologia própria. O resultado foi mais que um clipe: um registro de época.


O que talvez poucos saibam é que por trás dos glitchs, das máscaras e da cachoeira envolta em mistério, havia uma viagem de Palio, de Guarulhos SP até Mesquita RJ, treta com milicianos, uma road trip artística improvisada e a fagulha que daria origem a uma das colaborações mais marcantes da estética lo-fi do rap nacional: JODO e BANAL.



Tudo começou com um salve no Facebook


“Era um dia qualquer, nada demais. Eu já trampava com foto e vídeo há alguns anos”, relembra Negrelli, hoje referência no audiovisual independente. “Colei na casa do Jay Beats, como fazia direto, pra ouvir uns samples. A gente tava nessa de viver de som, de imagem e de baguncinha.”


Naquela tarde, Jay compartilhou que estava trocando ideia com um tal de Lessa Gustavo, rapper da Baixada Fluminense que recém havia lançado seu segundo EP Mundo dos Hits. “Eu já tava ouvindo o som dele pesado. Quando o Jay falou que ia rolar um EP colaborativo entre os dois, na hora eu falei: ‘mano, vamo pra lá então!’”


Assim surgiu a ideia da viagem. Juntaram-se à missão o Edgar (antes do “novíssimo”, segundo Negrelli), e Rao, grafiteiro e entusiasta do audiovisual, que levou sua própria câmera querendo aprender mais. Lessa arrumou um canto pra galera ficar: a casa da tia dele, em Mesquita, o que fizemos de fumaça lá, não foi brincadeira.



Sushi Humano, máscaras e Ragde


A parceria com Edgar já vinha de antes: nós dois integramos um coletivo experimental chamado Sushi Humano, entre 2013 e 2014. “Nessa época eu tava ensinando ele a editar, porque eu já não aguentava mais editar tudo pra ele sozinho (risos)”, conta Negrelli. Edgar, além de rapper, tinha (e tem) um universo ficcional próprio, o Ragde, onde personagens com máscaras e figurinos, transitam entre poesia, literatura e performance.


Uma dessas máscaras, iria compor o visual do clipe de os_sinos_que_não_lustrei.


A locação? Uma cachoeira perdida na Baixada Fluminense, sugerida por Lessa. “Era uma escalada mágica, meio sombria, e muito forte. Tudo combinava: o som, o lugar, os personagens.”



Glitchs, cores distorcidas e estética pioneira


O clipe marcou a primeira vez que Negrelli experimentou uma linguagem que viria a se tornar sua assinatura: o uso proposital de distorções visuais, glitches e saturações que quebram qualquer “pureza” da imagem tradicional. “Ali foi onde tudo começou mesmo. Aquela estética virou tendência depois, vários seguiram esse caminho.”


Mesmo sendo apenas o segundo vídeo lançado no canal da JODO, os_sinos_que_não_lustrei se tornou o mais visualizado do coletivo no próprio canal, até hoje, com mais de 150 vídeos no portfólio. Mais do que números, abriu portas: “Esse trampo me botou na mira de vários artistas que eu mesmo admirava”, comenta.



Tretas, milicianos e um tal de Kiwi


A semana no Rio não foi só poesia e glitch art. “Rolou um enquadrão sinistro dos miliciano demoníaco”, lembra Negrelli, com a mesma naturalidade de quem fala de um take em câmera lenta. “Foi intensa a parada.”


Como se não bastasse, uma treta estética (ah não) também eclodiu nas redes. “Um tal de Kiwi veio me acusar no Insta de copiar a estética dele, por conta das referências e inspirações como o próprio Jodorowsky... disse até que ele era o percussionista do uso de máscaras no hip hop nacional. Fiquei tipo: mano, cê tá louco (risos)?”



O legado de um clipe independente


Longe de gravadoras, editais ou budgets hollywoodianos, os_sinos_que_não_lustrei foi concebido no improviso, na troca de ideias e na disposição de criar algo novo, mesmo que a princípio fosse apenas um rolê para gravar uns sons e se inspirar.


O clipe sintetiza uma era e aponta pra frente: um retrato visual de uma cena que florescia à margem, onde cada conexão humana virava potência criativa. A JODO, a Banal, Lessa, 82 e tantos outros se tornaram peças fundamentais de uma estética que hoje já é reconhecida, remixada e reverenciada em muitos círculos.


Como Negrelli sintetiza: “Foi ali que tudo começou pra valer. Eu vi o futuro nas cores saturadas, onde eu me tornava parte do glitch, na convivência coletiva e nas profundezas que só se encontram após romper a fina camada superficial da estética e adentrar sem medo nos caminhos que o próprio universo pode retribuir... quando fazemos o que precisa ser feito, com sentimento envolvido, tudo pode acontecer.”